Os desafios da promoção da igualdade racial no Brasil para além do novembro negro 

Um mês antes de se iniciar as movimentações que caracterizam as práticas e ações do novembro negro em Campinas e na região, a Comissão da Igualdade Racial e Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil da OAB Subseção Campinas organizaram o IV Congresso de Direito Antidiscriminatório – Os desafios para a promoção da igualdade racial no Brasil que foi realizado em outubro passado na Casa da Advocacia de Campinas 

O evento refletiu e debateu a conjuntura e os rumos das ações para a promoção da igualdade racial no Brasil na perspectiva do Direito, as imbricações com a novas tecnologias, e a relevância da preservação e salvaguarda da memória e saberes tradicionais afrocentrados. Anualmente as duas comissões da OAB promovem e provocam a advocacia no sentido de pensar estratégias de atuação para o enfrentamento racial em todas as dimensões do cotidiano, tanto das lutas contra o racismo como para a sua superação na busca por equidade e reconhecimento no mercado de trabalho para o negro no Brasil. 

Quem participou de todas as palestras durante o IV congresso pôde usufruir profundamente das contribuições dos convidados. A dificuldade em relatar todas as partilhas dentro do curto espaço deste lide comprova a densidade do que foi proporcionado aos presentes inscritos no evento. Como o espaço para a difusão do que acontecera é curto, optamos por destacar algumas passagens, profundas e potentes das (os) palestrantes. 

O IV Congresso contou com a presença da Presidente da OAB Subseção Campinas Luciana de Freitas, que ao participar da cerimônia de abertura enfatizou a alegria e gratificação em trabalhar com as comissões temáticas, sobretudo as que promoveram o evento. Segundo Freitas iniciativas como a do congresso de direito antidiscriminatório contribuem para a evolução das comissões. 

O advogado Ademir José da Silva é um dos integrantes mais antigos da Comissão, e de acordo com ele é sempre importante que todos se engajem na temática do processo de igualdade racial, porque somente dessa forma é que se terá um Brasil viável. Estiveram presentes ainda na abertura do congresso, o secretário de justiça da prefeitura municipal de Campinas Peter Panutto, o delegado Dr Thiago Lopes de Resende e o Dr Jorge Alves de Lima integrante da academia campinense de Letras. 

Drª Alessandra Benedito

Dentre as diversas participações de destaque, o painel um que refletiu sobre o Racismo e suas tecnologias: uma análise da inteligência artificial como reflexo social, e contou com a intervenção de Alessandra Benedito, advogada, professora e pesquisadora do núcleo de Justiça Racial  da  FGV – Fundação Getúlio Vargas. Em sua exposição, ela propôs  um exercício exploratório junto aos presentes no sentido de diagnosticar a capacidade e limitação da inteligência artificial, que de acordo com Benedito é uma tecnologia programada. “Quando observamos o algoritmo é essencial a gente entender que nenhum algoritmo é imparcial”. Se não é imparcial e vivemos numa sociedade que é racista, gordofóbica, homofóbica, machista, tudo está em transformação e o algoritmo também estará. Porque por trás do algoritmo tem um programador e uma programadora. A gente alimenta o algoritmo e ele reflete o direcionamento que damos a ele, consciente e inconscientemente. Enfim, nenhum algoritmo existe em função da neutralidade. Tudo é sobre controle, é sobre poder. como se trata de um processo irreversível como esse da inteligência artificial, a questão é como lidar com isso a nosso favor, finaliza a pesquisadora.

Drª Maira Santana Vida

Ainda no painel um, destaque para a intervenção da advogada Maíra Santana Vida, professora, palestrante e pesquisadora em direitos humanos. De acordo com ela, pensar as relações dos direitos humanos é pensar na lógica do desafio permanente. “Possuímos um Estado com uma cidadania incompleta. O racismo e as tecnologias, sobretudo com o fenômeno da IA é nada mais nada menos que a retroalimentação do já existente na sociedade”. O Racismo à brasileira segundo Santana apresenta sinais e elementos contraditórios que fundamentam a gestão do controle de poder. Maíra partilha ainda pontos de contribuições dos  intelectuais negros imprescindíveis para o desafio permanente do cotidiano no Brasi. Nilma Lino Gomes que opta pelo conceito de Educação Racial para estratégias de lutas e enfrentamentos. Guerreiro Ramos argumenta a partir do questionamento de o negro ser o problema do Brasil. O Racismo é o problema, e não o negro. Samuel Vida trabalha e trata sobre o constitucionalismo negro e a sua contribuição para a constituição federativa do Brasil. O que o negro tem feito o tempo inteiro no Brasil é atuar na frestas, de forma pragmatica e subjetiva. Principalmente nesse campo virtual em que a mulher negra é a maior vítima das violências raciais numa repetição observada fora da ciberesfera.

Desembargador Dr Jorge Souto Maior

O painel dois teve como proposta para reflexão o Direito do Trabalho e a promoção da Igualdade Racial na sociedade de classes, e contou com as palestras de Waleska Miguel Batista, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis, Jorge Souto Maior. O desembargador aposentado pelo TRT da 15 região Souto Maior enfatiza a relevância do tema proposto, e que segundo ele impõe a lembrança de que não existe igualdade racial nas relações de trabalho, porque vivemos em uma sociedade capitalista caracterizada pela divisão e luta de classes. 

“É importante que assumamos a nossa posição. Ou se está na condição de detentor do capital, dos meios de produção, reproduzindo seu capital a partir da exploração do trabalho alheio, ou se está na dependência da força de trabalho para a sobrevivência integrando por consequência da classe trabalhadora.”

Ele destaca que é sempre bom lembrar que a escravidão negra no Brasil foi reconhecida juridicamente e validade por quase ⅘ da nossa história (420 anos). A eliminação do direito de escravizar no Brasil não foi seguida por nenhuma política de inclusão, pelo contrário, no período da transição do trabalho escravo para o trabalho imigrante com a lei da Terra de 1850, as políticas de governo foram todas ancoradas na exclusão e marginalização da população negra. Os postos de trabalho destinados à população negra sempre foram as de baixa renda e as subalternizadas.

Mesmo com a legislação trabalhista getulista em 1930 não se alterou a realidade, aliás ela contribui ainda mais com o processo de exclusão . A CLT de 1943 piorou ainda mais, com a implementação das normas não observando o trabalho rural e doméstico. As correções definitivas não se formaram pelo pressuposto jurídico único da igualdade. Os enfrentamentos necessários só fortalecem a ideia da consciência de classe. Essa compreensão é relevante considerando a realidade atual, e que está principalmente na mão da população negra o protagonismo da luta de classes, tão necessária à emancipação da classe trabalhadora. As lutas da classe trabalhadora negra é a luta de todas as pessoas, que na essência integram essa classe trabalhadora contra o racismo, explica Souto Maior.

É fundamental não permitir que as pautas sejam apropriadas e aprofundadas pelo capital dentro dessa concepção subjetiva, transformando em modos de reprodução da lógica do capital. O papel do movimento social antirracista é de reativar as utopias e de criar o proprio modelo de sociedade, que seja baseado nos saberes e ritualidades dos povos africanos e dos povos indigenas. Essa é a única saída para a humanidade, concluiu o desembargador

Drª Ana Míria Carinhanha

O painel três versou sobre o resgate da memória da pessoa negra: Direitos Civis e Ancestralidade, e contou com a participação de Ana Míria dos Santos Carvalho Carinhanha, Núbia Elizabette de Jesus Paula, Thaís Prado Ribeiro.  Destaque para Ana Míria Carinhanha, doutora em direito e secretária adjunta do Ministério da Igualdade Racial. Ela inicia sua fala lendo um poema da escritora Conceição Evaristo que faz uma menção aos avós e suas lembranças do passado. Em sua fala, Miria trata da relevância da memória como elemento estratégico para o debate na perspectiva normativa. Destaca a importância conjuntural de um debate acerca da temática racial que está sendo realizado em um espaço institucional e histórico de poder, a OAB. Ela lembra da criação das duas primeiras faculdades de Direito no Brasil, Recife e São Paulo como instituições responsáveis pela formação de quadros para o exercício do controle de poder político no país. Lembra também da lei Aurea, que tem somente dois artigos, e nenhum deles previu a reparação ao negro escravizado. O Brasil é uma ilha racial e de racismo, institucional e estrutural. A doutora Ana Míria finaliza sua reflexão encaminhando aos participantes uma sugestão de pesquisa para que ouçam a música “apesar de tanta dor, tanta marginalidade somos nós a alegria da cidade”. É muito difícil falarmos somente de agenda negativa sendo que temos tanta coisa boa e bonita para contribuir. Somos grandes conclui Miria.

Dr Hédio Silva Jr

O último painel teve como proposta refletir sobre o Racismo religioso no Brasil do Estado Laico, e contou com as palestras de Hédio Silva Jr, Pai Rodrigo de Hortolandia e Mãe Martha de Oxum do Rio de Janeiro O registro desse painel fica a cargo da fala do Dr Hédio Silva, que no início de sua intervenção destaca os desdobramentos de seu livro o Racismo Religioso, que partir dele os alçaram como o maior especialista no assunto. A especialidade dele está assentada nos anos de experiência de militância, e que foi esse acúmulo que o intitulou como o maior especialista no assunto, argumenta.. Ele até gostaria que tivessem tantos outros especialistas, principalmente aqueles forjados na prática e nos estudos, sérios e comprometidos com a temática. Há 40 anos atrás ninguém queria ser preto no Brasil. Atualmente existem consultores em Pretos, os pretólogos, muitos formados na universidade do Google. Por ser um ogã que foi ao STF defender a guarda do sábado aos adventistas do sétimo dia, que foi ao STF defender o abate religioso de animais, talvez tenha feito com que eu tivesse algum acúmulo sobre o tema para além da caixinha.

Não se trata de fazer proselitismo religioso, é democrático  que o negro professe a religiosidade que quiser. O problema é o racismo religioso em torno do patrimônio do povo negro que foi construido há séculos. Esse país não será justo enquanto o brasileiro for vitima  de qualquer forma de constrangimento e discriminação. Um sistema que perdura por 350 anos estruturado para nos coisificar, para nos objetificar, estuprar mulheres, para separar famílias, para marcar com ferro quente a pessoa e submetê-lo a jornada de trabalho qie assegura o tempo médio de vida da 24 anos, para torturar e açoitar as pessoas, um sistema estruturado para nos desumanizar. A religião de matriz africana lá no século XVIII resgatou, manteve e preservou a dignidade e a grandeza do negro escravizado. Sobre esse valor não há negociação, a que se respeitar. Sobre coexistir, não há problema também, nós sempre coexistimos desde sempre. E vamos coexistir sempre, diz Hédio Silva como um recado aos desavisados.

Exposição

Artista e ativista Andrea Mendes

Escritas ocultadas e memórias e apagamentos segundo Andrea Mendes, artista e ativista da temática. Foi uma honra mais uma vez participar do evento como esse, que trata do cotidiano do negro, sobretudo em Campinas. “A nossa tez é que costura esse caldo que é o Brasil”. Escritas ocultadas, memórias e apagamentos refletem os 250 anos de Campinas e os códigos ausentes  na cidade. A exposição publiciza a relevância e importância da família Cesarinos de Campinas para o campo do conhecimento do direito e da educação na esteira das movimentações intelectuais de Luiz Gama na cidade de São Paulo. A exposição segundo a artista é uma homenagem a Antonio Ferreira Cesarino Júnior.

O saldo

Comissão da Igualdade Racial e Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil da OAB Subseção Campinas

Segundo a presidente da Comissão da Igualdade Racial Adriana de Morais as palestras foram e ressoaram para além da advocacia campineira. Pessoas de outros lugares prestigiaram o evento. As falas, potentes, dos palestrantes deram a certeza do quanto a gente tem que caminhar, o quanto precisamos pautar e não só no espaço da advocacia. Estamos na casa do advogado e a necessidade de falar com os povos de terreiros, a necessidade de falar com as escolas sobre a questão racial. Cada um com seu recorte , mas sempre tendo a questão racial como fundamento. Afinal de contas, todos nós em todos os espaços não estamos livre do racismo. Ele vai continuar existindo, enquanto ainda não houver a consciência  de que podemos ser diferentes e termos direitos a diferença. Enquanto não for fundamento da sociedade, ainda vai haver  a necessidade de pautar a diversidade, conclui Adriana

Daniela Oliveira da Fonseca, vice – presidente da Comissão de Igualdade Racial disse que o evento deixou um saldo extremamente positivo. Tivemos a casa cheia durante todo o dia, as pessoas se mostraram comprometidas com as discussões dos painéis, mesmo com os imprevistos dos horários. Falamos sobre trabalho, espiritualidade, sobre racismo e tecnologia, que é um debate novo. O que a tecnologia, seus vieses têm enfrentado no dia a dia em relação ao racismo, e com outros campos do conhecimento. As pessoas demonstraram engajamento nas temáticas. Tivemos palestrantes debatendo sobre o mesmo tema, mas com vieses diferentes, o que revelou  sermos um povo plural, que consegue debater as diversas temáticas a partir  da relação racial no nosso país. Saímos felizes, acreditamos no fomento às discussões  sobre igualdade racial para além da casa da advocacia, celebra Oliveira

Nesse mes de novembro em que se tensiona e se intensifica as pautas decorrentes da luta da consciencia negra, a contribuição do IV Congresso de Direito Antidiscriminatório se revela valiosa para a luta antirracista na cidade e no Brasil. O acúmulo debatido e partilhado nsse congresso se converte em estratégia de luta e formação  para os movimentos sociais, para a advocacia e para o governo em todas as instâncias, sobretudo aquelas que se referem ao cumprimento de todo marco legal em vigor no ordenamento jurídico brasileiro.

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